sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Agustina, por Pedro Mexia


Grandes portugueses
Agustina Bessa Luís




Agustina procede como se toda a História fosse História alternativa, com a soberania e o desplante do romancista. Pedro Mexia

Fama e Segredo na História de Portugal

Afonso Henriques era uma criança raquítica, e foi substituído a tempo por um bastardo de Egas Moniz. O crudelíssimo D. João II estava fascinado com o magnetismo da violência e, maquiavelicamente, preferiu ser temido a ser amado. Eis o que escreve Agustina Bessa-Luís sobre dois homens consensualmente considerados "grandes portugueses". Sobre outras figuras, como Salazar, é mais lacónica: "Ninguém gostava dele senão por hábito".

"Fama e Segredo na História de Portugal" saiu em 2006 e foi agora reeditado, num álbum com ilustrações e vinhetas de Lucy Pepper. Não se aconselha este texto a quem não conheça bem a história portuguesa, sob pena de ficar irremediavelmente confuso com os nossos segredos e famas. Agustina recolheu as mais variadas fontes, que cita de fugida: estudos, memórias, cartas, iconografias, o precioso acervo dos cronistas. Para Agustina, os cronistas são os grandes historiadores, porque têm o espírito do novelista. Assim Fernão Lopes: "Que lhe encontrem erros cronológicos, ignorâncias palmares, preferências, caprichos de interpretação, isso quer dizer que, no meio da sua obrigação de cronista, encontra maneira de manifestar o seu humor de pequeno cortesão, de quem sabe demasiado para escutar às portas (...)" (págs. 44-45). A História, diz Agustina, já foi "escrita e comentada por pessoas doutoradas para isso". Na esteira de Oliveira Martins, mas ainda mais ousada, a História de Agustina é um livro de histórias, feito de licenças poéticas e efabulações. Agustina escreve que fixamos melhor aquilo que amamos do que aquilo que aprendemos, e este texto herético é a crónica subjectiva de uma patriota lúcida.

Como se viu, não há em Agustina exaltações nacionalistas, apenas um maravilhamento perverso com estas personagens que encarnam séculos de guerras, heranças, alianças, heroísmos e iniquidades. A prova de que esta abordagem é pouco canónica está na escolha de personagens mal-amadas. Agustina gosta da altivez de Lady MacBeth de Leonor Telles, e simpatiza com Filipe II, o tirano desacreditado. Aliás, a presença da Espanha na nossa História é sempre bem acolhida, embora sem tontices iberistas; o mesmo talvez não possa ser dito dos velhos aliados ingleses, gente que tem pouco a ver connosco, embora não nos tenha feito excessivamente mal. "Fama e Segredo" presta sempre atenção a esses estrangeiros, bem como aos actores secundários e aos figurantes. Aliás, a galeria de personagens históricos que Agustina escolheu é enganosa, pois o capítulo sobre D. Pedro II, por exemplo, é quase todo sobre Carlota Joaquina, essa a quem não perdoavam os defeitos de mulher e as virtudes de macho: "Trouxe do Brasil um pouco de folclore que se lhe pegou um pouco e que ela reviveu em Queluz com escravas e benzedeiras. Tinha mau génio, como a Eboli e D. Teresa e talvez as princesas de Avis, que deixaram um rasto de frieza mas não de lamuriosas. O que mais se admira nessas mulheres da História é que não choravam, não gritavam no parto. Ninguém as via chorar nem temer a morte. É possível que Carlota Joaquina, que Goya pintou de maneira que merecia a forca por isso, fosse mais amável e condescendente do que se julga. Doutro modo, como é que aturava ser tão fielmente retratada? A sua preocupação não era a beleza, mas o poder movido pelo imperativo erótico que os homens consideram ser o seu terreno exclusivo " (pág. 136).

Autora de romances que têm sido considerados "ficções historiográficas", Agustina Bessa-Luís encara a escrita como uma reescrita da História. Uma reinvenção fulgurante e às vezes polémica. Em vez das enfadonhas "reconstituições" e das fáceis "paródias", procede como se toda a História fosse História alternativa, com a soberania e o desplante do romancista. A nossa pré-nacionalidade começa com Viriato, um caudilho do povo, mas Agustina lembra que ele rapidamente cedeu à romanização, que a romanização era o futuro e mais valia ser amigo de Roma. Que isto não aconteceu só com Viriato parece óbvio. Quando a D. Sebastião, sabemos que era um homem piedoso, casto, narcísico, neurótico e exaltado, mas Agustina, que refere tudo isso, remata dizendo que duvida da capacidade de Sebastião para encarnar um mito nacional. Remoque que, em si mesmo, não é desprimoroso. É mais digno um rei mitificado ou desmistificado?

A tese mais radical deste ensaio é que a loucura sempre fez parte do nosso código genético, pelo menos desde a dinastia de Avis. Agustina escreve que a Ínclita Geração foi uma geração de maníaco-depressivos, o que não os desmerece, mas os explica. Para Agustina, as cortes europeias foram sempre uma espécie de hospícios de luxo, e por isso detecta ê em muitos reis e príncipes os indícios da demência e da renúncia. Quem mais se lembraria de dizer que o cativeiro de D. Fernando foi uma forma de "hospitalização"? Ou que D. Carlos, sabendo que vivia numa monarquia sem monárquicos, caminhou para o seu suicídio?

Há sempre neste relato momentos de grandeza que escaparam ou não foram entendidos, segredos que se perderam e famas que cresceram em desmesura. O que aconteceu ao verdadeiro Afonso Henriques? D. João II quis matar Colombo? Fomos injustos com o Conde Andeiro? E com João Franco? Alguma vez percebemos o Brasil? O fenómeno wagneriano do sidonismo foi uma erotização das massas ou um sacrifício para purgar a pátria. tal como o regicídio, a Flandres e o 28 de Maio? Afonso Costa pecou por optimismo? Salazar foi um exagero que ficava bem resolvido com Duarte Pacheco? Agustina é sempre intrigante e inesperada.

A nossa fama e segredo é sermos gente melancólica e passiva, com revoltas acumuladas que de quando em vez vêm ao de cima, mas raramente mudam tudo. Temos "a condescendência dos tímidos e a submissão dos autodidactas". A história dos portugueses, diz Agustina, é a história do senso comum, aquele senso comum que surge quando falham as boas intenções.Ficção

Génio disfuncional

Isenta de melodrama, pontuada de humor corrosivo, uma escrita capaz de nos levar ao riso.

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