sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sakharov de Portimão (Pedro Mexia)


Transcrevo aqui as partes essenciais da divertida e sábia crónica de Pedro Mexia na revista Ler de Fevereiro:

"O Sakharov de Portimão"

Faço parte de um pequeno grupo que se reúne às quintas-feiras numa cave em Algés e que não possui qualquer opinião sobre os processos judiciais em curso. Sabemos que se trata de uma actividade socialmente minoritária e condenada, e por isso juntámos-nos em segredo, como os primeiros cristãos.
Cá fora toda a gente opina. Toda a gentes sabe. Não há cafés, quiosque ou autocarro onde subsistam dúvidas sobre a culpabilidade de autarcas, banqueiros, pedófilos. Portugal tornou-se numa república da opinião. Não da opinião publicada , mas da opinião de rua. Não é o comentador televisivo que dita a opinião geral, são o taxista e a porteira.
No caso do desaparecimento de uma menina inglesa no Algarve, a opinião das porteiras dos taxas flutuou. Primeiro, toda a simpatia foi para os pais da criança, que atravessavam o maior sofrimento de que uma pessoa pode experimentar: depois, vieram as dúvidas. Finalmente a onda virou, e os MacCann, tratados com desprezo como os «ingleses», já eram culpados, de desleixo certamente, de ocultação provavelmente e talvez de homicidio da própria filha.
Houve duas pessoas que contribuiram para esta mudança. Dois ex-inspectores, Gonçalo Amaral e Francisco Moita Flores. Estes membros do CSI Portimão e do CSI Santarém desmultiplicaram-se em aparições públicas sugerindo que os culpados eram os ingleses. Não só o casal, mas a imprensa inglesa, os advogados ingleses, os jornais ingleses e os políticos ingleses. Como dizia a versão original do nosso hino: contras os bretões marchar, marchar.
(...)
Segundo Amaral há fortes indícios de que os MaCann eram culpados, e se o juíz arquivou o caso, isso não significa nada. (...) os pais da criança não gostaram e interpuseram uma providência cautelar que impedisse a circulação de ambos os panfletos. É a essa proibição que se refer o opus 2 de Amaral: "a Mordaça Inglesa". O livro é uma espécie de revisitação do 'Ultimatum' . Os bretões são poderosos e asquerosos, nós vergamo-nos à sua influência, e isso é inaceitável. Amaral que foi comunista durante anos até se filiar nos laranjinhas, diz nos que os MacCann pertencem às classes «privilegiadas», donde se conclui que talvez devessem ser julgados por um júri popular composto por porteiras e taxistas.
Depois, Gonçalo Amaral queixa-se da «censura». Conta-nos «onde estava no 25 de Abril», faz uma história abreviada da liberdade de expressão, clama pelo «direito à indignação» e diz que foi «amordaçado». Por momentos parece uma autobiografia de Manuel Alegre. E compara-se a Sakhrov, um homem que diga-se de passagem, se antecipou umas décadas à perspicácia de Amaral acerca da bondade do comunismo.
O terceiro ponto é o mais estapafúrdio. Segundo Amaral não havia razões para que o livro fosse retirado de circulação porque constituía apenas uma «opinião» (além disso, acrescenta, a providência cautelar é um instituto burguês). A tese de que os pais fizeram desaparecer ou ocultaram o cadáver da sua filha é apenas isso, uma opinião: «Uma opinião não é um insulto, uma afronta ultrajante. É, isso sim, um modo de ver as coisas que, para ser livremente julgado não tem que estar correcto. E em regra não está. De outro modo, todos os homens estariam unidos nas suas opiniões.» Tudo, para Amaral, são opiniões: as teses dele, a sentença do juiz, o próprio Código Penal. Mas será que alguém pode fazer acusações tão graves a coberto do direito de opinião? Gonçalo Amaral, o Shakarov de Portimão responde: «e a minha tese pode estar correcta ou incorrecta? Quem sabe?» E se estiver incorrecta? Gonçalo Amaral diz: bem, nesse caso «lamento». Ah, então está bem.


A inteligência é um posto.

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